sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O Palhaço e os Animais - Durovs, os bobos do povo!

Hoje, quando o circo vive sobre a ameaça dos talibãs da ecologia, nada mais oportuno do que celebrar as proezas do palhaço Durov, o primeiro artista a tratar o adestramento dos animais com base científica. Palhaço cientista? Pois é, há muito mais inteligência no picadeiro do que pensam os fundamentalistas ambientais.


Desde tempos imemoriais que o ser humano encontrou nos animais parceiros. Se por um lado uma parte da tribo a cada animal que surgia só conseguia pensar em comida, uns e outros, os mais estranhos e criativos, viam em cada bicho um semelhante. Estes eram os que passavam dias com um pedacinho de comida na mão tentando se relacionar com um leão. Dá para imaginar o escândalo que os outros faziam: - Vamos parar de palhaçada, animal! Este bicho é perigoso, vai acabar comendo a gente! - diziam os histéricos. Mas o palhaço era persistente e de tanto olhar olho no olho, fazer gestos lentos e demonstrar que estava só a fim de fazer uma amizade, não é que foi conseguindo se relacionar com a bicharada?


Primeiro foram os cachorros. Ferozes parentes das raposas acabaram se transformando em amigos fiéis sempre dispostos a uma boa brincadeira. E vieram os gatos, uns felinos pequenos mas capazes de furar os olhos dos inimigos. Bichos de muita personalidade que hoje se transformaram em bibelôs de madame, passando a vida dormindo no quentinho e pedindo cafuné...


Em alguns casos nossos antepassados adestradores devem ter ficado desapontados com o resultado. Pois não é que justo quando ele conseguiu amansar os touros, o resto da tribo teve logo a idéia de inventar o churrasco? Onde ele via um parceiro de dança, um companheiro para acrobacias e saltos, os outros só enxergavam uma picanha ao ponto...


Pode parecer que estou brincando e inventando, mas não, estou só imaginando. O que sabemos é que cada povo soube lidar com os seus animais companheiros de habitat, pois era assim que os antigos deviam se sentir quando conseguiram montar num elefante, fazer um hipopótamo entrar na roda e dar umas voltinhas. Há quem pense que tudo isso foi conseguido à custa de sofrimento e dor, pois quem já adestrou algum bichinho sabe que todo o segredo está no afeto.


E aí nós damos um pulo na história. Passamos por cima dos acrobatas que saltavam sobre touros em Creta, sobre os palhaços e seus cachorros que encantavam os filósofos gregos nos simpósios e nem paramos para dar uma olhada nas imensas menageries dos romanos que sabiam montar espetáculos com mais de 300 elefantes, 500 leões e 200 tigres. E isso muito antes dos imperadores resolverem alimentar a bicharada com cristãos.


Chegamos aos Irmãos Durov, que deram início à grande dinastia de palhaços adestradores, orgulho do povo russo desde antes da revolução soviética.


Os irmãos Vladimir e Anatoli Durov eram de família nobre mas largaram tudo para seguir a divertida vida de artistas mambembes, viajando em carroças e apresentando-se para o povo no meio das praças. Nos tempos conturbados do final do século XIX criaram fama ridicularizando os ricos e poderosos com muita verve e habilidade. Anatoli era acrobata, mágico e um versejador cômico de primeira. Seguia a tradição dos palhaços populares russos que cantando e versejando atravessavam o país levando as notícias e criticando os costumes. Vladimir sempre teve uma queda especial pelos animais. E foi com um número em que cantavam, recitavam e faziam um divertidíssimo desfile de animais que os irmãos Durov conquistaram o povo e os jovens intelectuais revolucionários. Entravam no picadeiro com porcos, pombos, cachorros, patos e galinhas e quando o povo os aplaudia de pé diziam: não somos os bobos da corte do rei, somos os bobos da corte de sua majestade o povo!


Tchecov foi um de seus mais entusiasmados fãs e escreveu seu belíssimo conto sobre o cachorro Kashtanka inspirado num episódio ocorrido com Vladimir:


Num dia muito frio, de um inverno especialmente rigoroso, o palhaço ouve um ganido angustiado vindo da rua. Quando abre a porta de casa vê um vira lata marrom coberto pela neve que lhe lança um olhar profundo e triste. Era o Kashtanka, o cachorro do marceneiro que na mais terrível miséria havia abandonado seu companheiro. Vladimir recebe o novo amigo e lhe ensina uma série de pequenos truques. O cachorro é esperto e logo se transforma num dos queridinhos do público, realizando peripécias bastante complexas e alegrando especialmente a criançada. Mas um dia, no meio do número ele para e não segue a rotina combinada. Fica de orelha em pé, estático, como que tentando ver algo mais além na platéia. E de repente Kashtanka sai correndo até as últimas filas das arquibancadas pois tinha reconhecido entre os milhares de assistentes seu antigo e querido dono, o pobre marceneiro. Vladimir chama os dois ao picadeiro e a platéia enlouquecida e emocionada não sabe se chora ou se ri e aplaude mais do que nunca esta demonstração de amor entre seres tão diversos a quem a vida havia separado de modo tão cruel.


Vladimir Durov já era um especialista em fisiologia animal quando a revolução e o prestígio que o Estado Soviético lhe dedica tornam possível a criação do seu Centro de Estudos Durov, onde desenvolve seu método de adestramento baseado nos reflexos condicionados de Sechenov e Pavlov.


A família cresce a coleção de animais também. Tendo por base o afeto e o profundo conhecimento das características psicológicas de cada um dos animais os Durov se especializam em criar números cômicos com os mais diversos animais livres no picadeiro formando um surpreendente e simbólico conjunto.


Os palhaços adestradores inventam diálogos absurdos e vão conseguindo reações dos animais a cada fala dando a perfeita ilusão de que todos naquele picadeiro estão mantendo uma conversa hilária e completamente absurda. Elefantes, focas, camelos, patos, chimpanzés e porcos atuam juntos numa prova irrefutável da incrível capacidade de compreensão das características de cada um dos animais e do afeto com que eles são tratados.

O que os mal humorados que se intitulam defensores dos animais parecem querer negar é que somos todos animais e nesse pequeno planeta devemos buscar uma vida de prazer e alegria em que possamos conviver em harmonia. Ah! Se o mundo desse ouvido aos palhaços....


Alice Viveiros de Castro é acrobata mental, ambientalista, defensora dos animais e vive na roça com suas companheiras Nena, Menina, Rebeca, Punk, Fiona e com o Gato Pipoca.

2 comentários:

  1. Alice, parabéns pelo belo texto
    "Ah! Se o mundo desse ouvido aos palhaços...."
    que maravilha seria viver
    bjo grande

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  2. belo texto Alice...
    "Ah! Se o mundo desse ouvido aos palhaços...."
    que maravilha seria viver

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